Quando se popularizou o microônibus disse a mim mesmo: eis mais uma imagem para a crônica. Ambos se parecem. São vizinhos. Na crônica cabem poucos personagens, no microônibus, poucos passageiros; a crônica é curta e leve; o microônibus pelo próprio prefixo grego “Micro” já indica que é pequeno, curto. Microcéfalo, por exemplo, é o que tem a cabeça muito pequena ou curta, depende do sentido; microcosmo é um mundo pequeno e microcorrupção é uma coisa que não existe no país. Quiçá, no mundo.
Quanto a leveza, na crônica resolve-se no sentido figurado das palavras, a leveza é do pensamento, porém, no microônibus essa leveza é literal e foi resolvida retirando-se do veículo o pobre cobrador e diminuindo-se o espaço para idosos e estudantes e amortecendo o salário do motorista-júnior que faz dupla-função: dirige e cobra.
Quando embarco num microônibus sempre tenho a sensação de estar viajando numa crônica; ainda mais quando ergo os olhos e leio o aviso na plaqueta: “Fale ao motorista somente o indispensável”. Quem leu Ezra Pound sabe que no seu livro ABC da Literatura ele aconselha a verificar quais e quantas são as palavras inúteis na composição dum texto. E aqui entra novamente a plaqueta, só que agora parafraseada: Fale ao leitor somente o indispensável. Ocorre que os motoristas são seres humanos e às vezes eles é quem acordam com vontade de falar mais do que o indispensável.
Não é fácil dar de 4 a 7 viagens num microônibus, monologando de si para si. Ora, deu-se o caso de uma tarde um motorista da Baixada Fluminense trocar o monólogo pelo diálogo e começou a dizer a dois estudantes que Nilópolis foi o maior produtor de laranja do Estado do Rio de Janeiro em 1940. Isto ele tinha ouvido numa igreja. De fato a Baixada foi muito rica em laranja no passado, tanto que existem umas laranjinhas na bandeira da cidade de Nova Iguaçu. E dizia o motorista: “Passa lá hoje pra ver se você vê um pé de laranja?!”. Eu que durante a viagem monologava sobre a questão dos deficientes visuais, disse com voz do tamanho de microônibus, de crônica: pobre motorista-júnior! Não consegue enxergar um pé de Laranja! Assim vai ser júnior para o resto da vida! Amo os cegos, mas detesto a cegueira, dessas que não vi nada, não sei de nada...Amo os cegos, mas aborreço os que são pagos para fechar os olhos. Prefiro um poeta pobre de olhos abertos a um Secretário de Fazenda, um pastor de olhos fechados.
Hoje não sei quem é o maior produtor de laranja, mas sei que o motorista parece o moço de Eliseu. Eliseu era um profeta que fazia saber ao rei de Israel todos os planos do rei inimigo, o rei da Síria, que chegou a pensar haver traidores no seu reino, porém, um dos seus servos lhe disse: “Há um profeta por nome Eliseu que faz saber ao rei de Israel as palavras que tu, Oh rei da Síria, fala na câmara de dormir!”.
À noite, o rei sírio mandou um exército cercar a cidade onde estava Eliseu. Bem cedo quando o moço se levantou e saiu, viu-se cercado por um grande exército com cavalos e carros e disse a Eliseu: Ai, meu senhor! Que faremos? E Eliseu respondeu, não temas; porque mais são os que estão conosco do que estão com eles. E orou Eliseu: Senhor, peço-te que lhe abras os olhos, para que veja. E o Senhor abriu os olhos do moço, e viu; e eis que o monte estava cheio de cavalos e carros de fogo em redor dele e de Eliseu. Veja o leitor que o moço de Eliseu só via o inimigo; não via em volta de si o exército que os protegia. Se bem que certos pastores também não andam vendo, não. Andam cercados de homens armados até os dentes. Que show da fé é esse? Esse espetáculo já é paisagem de todos os dias. Apoteótico seria, já pensou que belo, os pastores cruzando a Avenida Presidente Vargas cercados de cavalos e carros de fogo!
Mas voltando ao moço, foi preciso Eliseu orar, pedindo a Deus que abrisse os olhos do rapaz. Pois inspirado nessa história resolvi fazer a mesma oração pelo motorista baixadense, de Nilópolis, dentro do microônibus cheio: “Ó Senhor, peço-te que lhe abras os olhos para que veja...” e o Senhor abriu os olhos ao motorista, e ele viu; e eis que a Baixada Fluminense era um lindo pomar, cheia de pés de Laranja. Pés de Laranja 34/35/36/37/38/39/40...
* Crônica publicada no Jornal Hoje - Diário da Baixada Fluminense, no período de 20 a 30 de abril de 2007
Quanto a leveza, na crônica resolve-se no sentido figurado das palavras, a leveza é do pensamento, porém, no microônibus essa leveza é literal e foi resolvida retirando-se do veículo o pobre cobrador e diminuindo-se o espaço para idosos e estudantes e amortecendo o salário do motorista-júnior que faz dupla-função: dirige e cobra.
Quando embarco num microônibus sempre tenho a sensação de estar viajando numa crônica; ainda mais quando ergo os olhos e leio o aviso na plaqueta: “Fale ao motorista somente o indispensável”. Quem leu Ezra Pound sabe que no seu livro ABC da Literatura ele aconselha a verificar quais e quantas são as palavras inúteis na composição dum texto. E aqui entra novamente a plaqueta, só que agora parafraseada: Fale ao leitor somente o indispensável. Ocorre que os motoristas são seres humanos e às vezes eles é quem acordam com vontade de falar mais do que o indispensável.
Não é fácil dar de 4 a 7 viagens num microônibus, monologando de si para si. Ora, deu-se o caso de uma tarde um motorista da Baixada Fluminense trocar o monólogo pelo diálogo e começou a dizer a dois estudantes que Nilópolis foi o maior produtor de laranja do Estado do Rio de Janeiro em 1940. Isto ele tinha ouvido numa igreja. De fato a Baixada foi muito rica em laranja no passado, tanto que existem umas laranjinhas na bandeira da cidade de Nova Iguaçu. E dizia o motorista: “Passa lá hoje pra ver se você vê um pé de laranja?!”. Eu que durante a viagem monologava sobre a questão dos deficientes visuais, disse com voz do tamanho de microônibus, de crônica: pobre motorista-júnior! Não consegue enxergar um pé de Laranja! Assim vai ser júnior para o resto da vida! Amo os cegos, mas detesto a cegueira, dessas que não vi nada, não sei de nada...Amo os cegos, mas aborreço os que são pagos para fechar os olhos. Prefiro um poeta pobre de olhos abertos a um Secretário de Fazenda, um pastor de olhos fechados.
Hoje não sei quem é o maior produtor de laranja, mas sei que o motorista parece o moço de Eliseu. Eliseu era um profeta que fazia saber ao rei de Israel todos os planos do rei inimigo, o rei da Síria, que chegou a pensar haver traidores no seu reino, porém, um dos seus servos lhe disse: “Há um profeta por nome Eliseu que faz saber ao rei de Israel as palavras que tu, Oh rei da Síria, fala na câmara de dormir!”.
À noite, o rei sírio mandou um exército cercar a cidade onde estava Eliseu. Bem cedo quando o moço se levantou e saiu, viu-se cercado por um grande exército com cavalos e carros e disse a Eliseu: Ai, meu senhor! Que faremos? E Eliseu respondeu, não temas; porque mais são os que estão conosco do que estão com eles. E orou Eliseu: Senhor, peço-te que lhe abras os olhos, para que veja. E o Senhor abriu os olhos do moço, e viu; e eis que o monte estava cheio de cavalos e carros de fogo em redor dele e de Eliseu. Veja o leitor que o moço de Eliseu só via o inimigo; não via em volta de si o exército que os protegia. Se bem que certos pastores também não andam vendo, não. Andam cercados de homens armados até os dentes. Que show da fé é esse? Esse espetáculo já é paisagem de todos os dias. Apoteótico seria, já pensou que belo, os pastores cruzando a Avenida Presidente Vargas cercados de cavalos e carros de fogo!
Mas voltando ao moço, foi preciso Eliseu orar, pedindo a Deus que abrisse os olhos do rapaz. Pois inspirado nessa história resolvi fazer a mesma oração pelo motorista baixadense, de Nilópolis, dentro do microônibus cheio: “Ó Senhor, peço-te que lhe abras os olhos para que veja...” e o Senhor abriu os olhos ao motorista, e ele viu; e eis que a Baixada Fluminense era um lindo pomar, cheia de pés de Laranja. Pés de Laranja 34/35/36/37/38/39/40...
* Crônica publicada no Jornal Hoje - Diário da Baixada Fluminense, no período de 20 a 30 de abril de 2007