terça-feira, 25 de novembro de 2008

A CRÔNICA DO BARBOSA

Há pessoas cujas vidas mudam quando ganham na Mega-Sena; aceitam Cristo como salvador ou roubam um carro-forte e logo em seguida aceitam Cristo como salvador. Nesse último caso, mudam inclusive as vidas de alguns pastores que mudaram tanto nesses últimos tempos, que já aceitam como ofertas e dízimos, cordeiros mancos, aleijados, caolhos. Malaquias é um livro fora de moda.

A minha vida mudou por causa do Barbosa. Acontecimento da minha infância na Vila Tiradentes. Sim... Acho que foi por causa do Barbosa. É tanta a distância... Sempre pesou sobre mim a acusação de querer ser diferente nos cabelos, quando os tinha; nos tênis, nas idéias. Mãe, pai, madrasta, primos, todos me acusavam e eu ficava pelos cantos, por conta da autofagia, isto é, o diferente sempre é eliminado, já se sabe: Dionísio e Cristo foram eliminados. Graças a Deus não tenho mais esse problema. Aderi e veio a metamorfose. Estou perfeitamente integrado. Hoje sou chamado de imitador de Carlos Drummond de Andrade; de escrever à moda de Montaigne; plagiatário de Machado de Assis. E não é só Machado, não. No salmo 68:6 está escrito que Deus faz que o solitário viva em família. Tenho família, mas sou como Cristo: não tenho família real; minha família é ficcional. Sou uma existência com raiz.

Mas a mudança começou na sala de aula quando a professora perguntou:

- Quem foi o mártir da dependência do Brasil...

- Delfim Neto. Todos acertaram.

- E quem foi o mártir da Independência?!

Todos disseram Tiradentes, menos eu, que saí com um Barbosa. A professora caminhou em minha direção repetindo a pergunta com as palavras lhe arranhando a garganta, auxiliadas por uns olhos esbugalhando em círculos concêntricos e eu confirmando, Barbosa! Barbosa! Barbosa! Toda mãe começa assim para mostrar aos seus filhos que não estão gostando de uma determinada coisa. Primeiro elas usam as palavras arranhando na garganta, auxiliadas pelos olhos arregalados. Parecem que vão saltar das órbitas. Depois, com o tempo, basta um arregalar de olhos. É muito das mulheres conversarem pelos os olhos. Madrasta, pra quê esses olhos tão grandes?! Diminua esses olhos! Você fica horrível, Loba má!

Diante da teimosia, mandou chamar meus pais que já chegaram batendo lá mesmo no Grupo Escolar. Grupo Escolar... Quanto tempo! Fala direito menino! E eu: Barbosa! Pedro negou Cristo, mas eu não nego o Barbosa. Eu parecia um Pedro convertido, apanhando por causa do nome de Jesus. Quanto mais batiam, mais eu falava Barbosa. Ah esse pai da Taninha! Tive aos 7 anos um interrogatório de Ditadura. Pelado, no frio, luz na cara e apanhando e não apareceu nenhum Gamaliel para dar um parecer e me salvar. Toma Diabo! Se o filho é diabo, o pai então... Fui levado a uma rezadeira, mas o Barbosa resistiu a todas as rezas. Mudaram o método. Essa coisa de usar o corpo alheio é muito cômoda, deram uma surra de espada de São Jorge no Barbosa, mas quem acabou roxo fui eu. Levaram-me a uma Assembléia de Deus, mas o demônio Barbosa não saiu. Quem foi o mártir da Independência, demônio?! Barbosa, já disse, pastor analfabeto! Parece que não estudou! Isso aí não é um demônio só, não, irmãos! Isso é uma casta. É a casta dos Barbosas! Isso é uma legião barbosense, uma legião romana tinha uns 6 mil soldados, podem contar que tem uns 6 mil Barbosas aí dentro desse garoto e só sai com jejum e oração e uma boa oferta de no mínimo 200. Menos essa legião não sai! Se vierem com 199,99 a legião não sai. A benção é de 200 para cima. Aceitamos cheque.

Meu caso de Barbosa foi parar na rádio e a astróloga Zora Yonara respondeu, no ar, a cartinha da madrasta, escrita por mão de vizinhos: Madrasta Desesperada de Vila Tiradentes, o caso do seu enteado é grave. Talvez ele esteja confundindo. De fato existiu no tempo de Tiradentes, um Barbosa, Domingos Vidal de Barbosa que teve a pena de morte comutada em degredo perpétuo, em 1792, na ilha de Santiago, na África. Você diz em sua carta que seu enteado é do signo de peixes, mas esse não é o problema. Possivelmente a questão está no ascendente em touro, que só deveria começar a atuar nesse menino, depois dos trinta, mas são coisas dos planetas. Os taurinos são assim, teimosos, mesmo sabendo que estão errados. Quer um conselho de amiga? Comece a dizer pela Vila que seu enteado é poeta e logo, logo o povo vai compreender e acostumar com o Barbosa, pois de médico, poeta e louco quem não tem um pouco? Beijos querida! E sucesso com o seu enteado!

Por orientação da professora, meus pais me proibiram de ouvir a Zora e ver até o programa do Chacrinha, o Abelardo Barbosa. E só agora vejo, foram duas maldades boas na minha vida.

Esse tipo de conversa costuma ir longe: Agora vê! Que menino burro! Dizer que o mártir da Independência foi esse tal de Barbosa! Chegou a São Paulo. Mas a conversa primeiro passou pela prefeitura da cidade e logo apareceu lá em casa um homem de olhos arregalados, chamado Barbosa, um sujeito barbono, parecendo o Adamastor de Camões, implorando ao meu pai que me fizesse calar a boca. Era um Barbosa que estava dando a independência a todos os que não tinham casa própria no morro da Caixa D’Água. Fazia um serviço de mártir, sofrendo para inserir os nomes dos novos independentes no lugar dos nomes dos antigos e verdadeiros proprietários a preços módicos. Houve festa da Independência no morro com todo mundo exibindo seus nomes nos carnês de impostos. Cogitaram de mudar o nome de morro da Caixa D’água para morro do Barbosa. Só hoje tendo conhecimento da Ciência Jurídica é que descobri... Ninguém se tornou independente coisa nenhuma. O que o Barbosa falava sobre independência eram barboseiras, isto é, baboseiras específicas do Barbosa. Respeitem seus direitos autorais. Só o nosso nome no RI (Registro de Imóveis) é que proclama a independência de um imóvel. Nome no carnê da prefeitura não dá propriedade a ninguém, daí os olhos arregalados daquele Barbosa. Cadê o pai da Taninha?!

A conversa chegou a São Paulo, cidade de Barbosa. Provavelmente caminhoneiros. De lá veio um convite em meu nome para que eu fosse receber o Título de Cidadão Barbosense, indicado pelo sugestivo vereador Barbosa. Meu pai e minha madrasta cada um de um lado me levaram até os correios suspenso pelas orelhas e aquela gostosa sensação de estar voando que toda a criança tem, ficou prejudicada pela sensação de dor nas orelhas.

Das duas orelhas a que mais doeu foi a que viajou nas unhas da madrasta. Tinha a mão lisa, cheirosa, cremosa e, no entanto, foi a que mais feriu. Acho que esperei demais da madrasta. Uma grande substituta para a mãe. Fez pior. Acho que esperei demais das mulheres. Não tive sorte com as orelhas. A mãe me pegava pela orelha; a madrasta idem e com as unhas; a amiga sangrou a orelha da amizade; a mulher que amei cravava as unhas na orelha do meu coração. E quase fiquei surdo para o amor. Para todos os amores. Vários psicólogos vieram tentando me salvar por um preço que um inglês diria: is a steal! Mas o que me salvou mesmo foi o meu velho cotonete da Johnson & Johnson por apenas R$1,75.

Nos correios me fizeram escrever que eu não iria a Barbosa receber porcaria de Título nenhum. Se ao menos fosse um título de capitalização! Resmungos da madrasta. Mas como meu pai e madrasta não sabiam ler, escrevi educadamente que não poderia ir a Barbosa receber o Título de Cidadão Barbosense porque não tinha barba; e minha família toda havia morrido num naufrágio de barca, na verdade foram devorados por um cardume de piranhas argentinas que vieram a turismo passar o verão na Baía de Guanabara. Perdi toda a família, ó Fluxível Excelentíssimo Barbosa! Não tenho um responsável sequer. Os responsáveis por mim agora são Machado de Assis, Voltaire, Fielding, Sterne, Rabelais, Luciano. Eis a minha família que o pai da Taninha me deu de presente de aniversário. Ih, Taninha! Teu pai não dá presente de aniversário, não! Ele dá livros! Deus faz que o solitário viva em família! É pena que uma família de mortos não tenha capacidade civil para autorizar a minha ida para Barbosa! Muito embora aqui na cidade um amigo seu de profissão, político, ex-prefeito, vereador Stélio Natário dos Santos conseguiu com que certa morta assinasse a escritura de compra e venda de um imóvel para ele. Eu pensava que só Cristo tinha o poder de ressuscitar os mortos, mas vejo que os políticos também têm esse Dom, infelizmente rejeitado pelo artigo 297 do Código Penal.

Até que enfim chegou o pai da Taninha com aqueles óculos negros e lentes grossas. Marinheiro. De guerra. Estudioso. Ele nos mostrou de novo, no livro, a Crônica do Machado de Assis, de 22 de maio de 1892, onde bem claro Tiradentes, que morreu velhinho ganhando pensão da coroa portuguesa, é rebatizado de Barbosa por D. João VI. Levamos para a professora que rápido nos tirou de sala de aula, pediu não contássemos a ninguém e ficou o ano inteiro pagando refrigerante e pão com mortadela para Taninha e eu.

Não sou oficial de justiça, serei escritor - nem que seja por usucapião - por isso o referido não é verdade e nem dou fé.

Um comentário:

DonDichote disse...

Lasana, sumido amigo: 'tá porretíssima! O mais fino verve multimilenar. E ainda há quem tenha a cachimônia de tentar desqualificar a crônica. como subgênero (não sei se esta palavra está nos cânones do Acordo Ortogáfico, mas, guerrilheiro da Última Flor, sem status de "exército regular",estou - e me quero - à margem de qualquer armistício linguístico: sempre posso arguir que não estou errado, mas apenas no legítimo exercício de minha variante linguística particular; mero escriba, escevente, escriturário e, não, escritor, não posso falar - até por falta de estilo - em idioleto. Ufa! Estes parênteses equivalem ao cajado de Moisés na travessia do Mar Vermelho!)... Dê notícias. O amigo Carlos.