domingo, 16 de dezembro de 2007

TRINDADES DA VIDA


Quando Trindade se preparava para a Primeira Comunhão, dizia que seu sonho era ser padre, mas não por vocação, isso ele não dizia, pois se havia de um lado a Santíssima Trindade o acolhendo na igreja, em casa enfrentava a Maligna Trindade, Falso Profeta, a Besta e sua Madrasta, que desde os seus cinco anos de idade, esperava o pai sair para trabalhar e o atormentava, mandando-o embora de casa. Então queria ser padre para ter a Trindade, casa, salário e filosofia.
E foi nas aulas de catecismo que aprendeu a ver na natureza os símbolos da Santíssima Trindade. Por exemplo, a raiz, o caule, os ramos formam uma só planta; no sol: o foco, a luz, o calor, formam um só astro. Quando a professora Dulcinéa disse que na família, o pai, a mãe e a criança era uma espécie de Trindade na terra, a coisa complicou porque no Grupo Escolar Tiradentes, na sala 1, havia três meninas, a Trindade da Beleza, Arlete, Maria de Fátima e Damiana.

Escolheu a de cabelos negros que veio sentar-se ao seu lado, nas antigas carteiras de dois alunos e davam três com boa vontade se a professora tivesse as pernas bonitas. Escolheu a de cabelos negros e a convidava com ternura, todas as tardes para formar uma Trindade na terra, mas nem toda a terra aceitou o convite para apoiar aquela Trindade e numa noite em que um lençol de corvos enfarruscava as estrelas, seus pais mudaram de repente, levando-a para escuridades incertas e não sabidas. Triste Trindade! Tão cedo buscou Trindade e já tão tarde não a tem. Formou Trindades é certo, mas Trindades apócrifas. Trindade é três em um, tri-uno como Os Três Mosqueteiros: “Um por todos e todos por um”.

Trindade é três em um, Trindade crônica, Trindade Conto, Trindade poesia e de sua caneta-tridente nem sempre dá para separar e o texto sai meio conto, meio crônica, meio poesia; meio sério, meio humor, meio amor. E quem disse que ele veio separar terra, céu e mar? É a oportunidade de usarmos a nossa Trindade e o lermos com vontade, intelecto, sentimento.

Enquanto o parzinho dele não aparece para formar uma Trindade, ansiedade para quê? Tornou-se catador de símbolos na natureza. O símbolo representa alguma coisa por convenção. A aliança é um anel simbólico de noivado ou casamento, mas o símbolo pode representar mais de uma coisa como a água que simboliza a transparência (Tão em falta), a inconstância e o batismo. E os símbolos não ficam reduzidos a duas ou três representações. Dependendo do talento o símbolo pode representar muitas coisas. Desde a maçã que simboliza o pecado, símbolos surgem para representar uma ou outra coisa.

Um símbolo criado recentemente para representar a esperança da família brasileira foi a Árvore de Natal Bradesco Seguros e Previdência. Pelo menos foi o que ouvi no rádio durante o tempo em que observa a árvore. Que mudança. A esperança simbolizada pelo verde, agora será também pelo vermelho do Bradesco. Olha, já estou cheio de esperança vermelha.

A árvore, este ano, está mais alta, 85 metros . Que maravilha. Está alta mesmo e este mês o governo resolveu diminuir as tarifas bancárias (um tapinha), mas essas medidas só irão vigorar a partir de 30 de abril, quando os bancos só poderão aumentar as tarifas de 6 em 6 meses. Oxalá até abril, no mesmo lugar da Árvore da Bradesco Seguros, não cresça outra árvore, a Árvore das Tarifas Bancárias, também com 85 metros . Acreditemos na esperança vermelha, Trindade! Isso não vai acontecer. Se acontecer, o povo vai enxergar no próximo Natal e seguintes, uma Trindade, três árvores, três em uma: a Árvore de Natal da Bradesco e Seguros, a Árvore das Tarifas Bancárias e a Árvore dos Juros que por mais digam os jornais está caindo, sempre é a mais alta entre os países.

Se a raiz, o caule e os ramos formam uma só planta; se o sol, foco, luz e calor, formam um só astro, semelhantemente, na Lagoa Rodrigo de Freitas, a Árvore de Natal da Bradesco e Seguros, a Árvore das Tarifas Bancárias e a Árvore dos Juros formam uma só conta e quem paga não são os Três Reis Magos.

sexta-feira, 9 de novembro de 2007

PEQUENAS DESCOBERTAS

Descobri um fio condutor na minha vida. E usarei o surrado procedimento da exemplificação para demonstrá-lo, mas sendo crônica, não poderei contar todos os casos porque nem ainda o mundo todo poderia conter os livros que seriam escritos e a crônica não desabrocha. Vive em estado de flor. A crônica é um botão de alcaparra. Abre o apetite para lermos o universo dos vários pontos de vista. Por exemplo, no céu à noite, há os que só vêem estrelas, mas hás os que vêem brancas flores de alcaparras desabotoarem-se em redor da lua.
Um dia estagiando na Defensoria Pública, chegou uma jovem com o filho nos braços para ser atendida. Agora é comum jovens com filhos nos braços. Entrou, sentou e enquanto a defensora examinava o processo, tirou um dos peitões, sem silicone, e sufocou o garotinho. O fio condutor de muitas vidas era o bundão, agora é o peitão. A rima permanece. Daí a pouco ela começou a umedecer os lábios e revirar os olhinhos. Ora, estava dando mole! Saí rapidinho de detrás da escrivaninha e vim para frente dela como quem admira o ato do aleitamento materno. Sonso! Disseram-me os olhos do garotinho que mandou a mão no outro peitão. Cai fora! São meus! E ficava a sua cabecinha lá e cá como bolinha de pingue pongue e ela umedecendo os lábios, revirando os olhinhos e o pezinho do garoto empurrando o meu joelho, dizendo: arreda! Vade retro, Satanás! Mas vocês sabem, Satanás é perseverante. Escrevi meu telefone num torpedinho, mas o infeliz caiu, abaixei e quando me erguia quem caía era a jovem, veio com tudo. Salvei o garotinho, a mãe. Fiquei amassado e sufocado pelos peitões e o ingrato do menininho rosnando para o meu lado. A jovem não comia há vários dias e ambos foram para o posto de saúde. O marido não fazia as compras e o processo na mesa da defensora era de Pensão Alimentícia.
Mais tarde trabalhando num posto de saúde, o Juca passando mal, pediu para sair cedo, depois também pedi para sair cedo, mas para comemorar o aniversário de casamento num hotelzinho. Juca era um homem apaixonado pela esposa. Trazia no vidro do carro, nas janelas do seu apartamento, na prancheta de acrílico do serviço o adesivo: “Eu Amo Minha Esposa”.
Quando chegamos qual o carro estava estacionado no hotel? O do Juca! Passando mal! Estava tão mal que esqueceu a porta do carro aberta e entrei, olhei o seu rádio com frente destacável. Levei a frente destacável. No plantão seguinte a equipe médica e eu esperávamos o Juca se queixar e a desculpa a ser dada. Que cara-de-pau. Disse que furtaram a frente destacável no estacionamento do shopping. A equipe me olhou, meti a mão no bolso para lhe entregar, mas não entreguei porque o Juca continuou, dizendo que a esposa havia saído com o carro e a frente destacável havia sido furtada enquanto ela fazia compras. Eu ia processar, gente, mas minha esposa se descabelou toda, dizendo que não saía daquele shopping sem a frente destacável. O gerente ressarciu na hora, ainda deu para ela várias bolsas de roupas novas e me mandou um par de sapatos novinho. Valeu a minha esposa se descabelar! Eu Amo Minha Esposa. E guardei a frente destacável para o Juca não passar mal de novo.
Ainda no posto de saúde, estava de plantão como vigia e certa manhã fui surpreendido pela administradora com a notícia de furto das tampas de ferro dos registros da água. Em volta dos registros havia saco de pipoca, papéis de balas, biscoitos, muito empoeirados e não eram 9 da manhã. Não poderia ter sido no meu plantão o furto porque o saco de pipoca estava envelhecido, tanta poeira! A administradora aceitou a argumentação e sem poder precisar qual o dia, silenciou, mas um zumbido no coração me incomodava: Prova falsa! Já perto de casa retornei e comecei a busca pelo ferro-velho nas imediações do posto. Batata! Tinham sido furtadas no meu plantão mesmo. O dono do ferro-velho dedurou: Pegaram às 6 da manhã, durante o meu café. Recuperei-as e contei o caso à chefe. E nos veio a revelação: Entre 6 e 9 da manhã quanta poeira se acumulara sobre o saco de pipoca, papéis de balas e biscoitos. E lá dentro do posto, gente sendo atendida, gente de boca aberta, dente aberto para receber obturações.
Eis um fio condutor na minha vida: atirar no que viu e acertar no que não viu. Mas nunca acerto no perene. E descobri por esses dias que se menores as alcaparras, mais saborosas e podem durar uns 30 anos. É pena as crônicas não serem como as alcaparras. A maioria delas não duram 30 horas, embora saborosas.

Hoje: lula ao molho de alcaparras

Quando a carne está boa vamos comendo, mas deu sinal de ranço é hora de parar. A não ser que sejamos hienas ou queiramos imitar o pessoal da Idade Média que recorria às alcaparras para disfarçar o ranço das carnes passadas. As hienas não precisam de alcaparras. Nunca vi uma hiena no mercado, comprando alcaparra para despistar o cheiro desagradável dos restos do leão.

Na crônica anterior falei que a alcaparra abre o apetite, mas não disse tudo. A alcaparra além de abrir o apetite e mascarar o gosto ruim das carnes, é também digestiva, acalma, diurética, afrodisíaca... E pode deixar você rico.

Se as alcaparras podem durar uns 30 anos e a maioria das crônicas não duram 30 horas e se separam no tempo, ambas carregam duas semelhanças e se aproximam: sobrevivem na pouca profundidade e multiplicam-se facilmente.

Segundo Heitor Cony, para fazer uma crônica basta abrir a janela. Quanto a abrir a janela tenho dificuldade porque a minha dá direto na parede da vizinha e já pedi, implorei para ela fazer que fosse uma janelinha, um buraquito, já daria uma crônica, mas ela tem resistido bravamente ao meu pedido a pedido de seu pai. Se eu insistir vou acabar virando o cronista do olho roxo.

Essa vizinha é uma paisagem perfumada, mas a parede é de tijolo dobrado, recomendação dos pais, tijolo maciço, mas à tarde ela encosta do lado de lá e a parede fica suada do lado de cá porque os mesmos tijolinhos se transformam em esponjas e jogam para a minha janela a bela vizinha em estado gasoso. E vivo um misto de anfíbio da dor e da ternura por essa Flor de alcaparra-cheirosa, protegida por espinhos: irmão e pai.

Não se engane: um buquê de pedras também murcha e a crônica também tem espinhos, mas... Distanciemo-nos das paixões, da paixão pela vizinha que o riso e a reflexão reclamam o seu pedaço de pão e nesse instante ambos oram a mim: Pai nosso que estás no texto... O pão nosso de cada dia nos dá hoje. E qual pai se o filho pedir pão, dará um escorpião, serpentes? Pois tomem lá meus filhos. Hoje lhes darei lula ao molho de alcaparras. Vamos ao molho.

Sei em nosso país o comum é salmão ao molho de alcaparras, onde não há disfarce, mas casamento entre o doce e o salgado. Sei também não é nosso hábito tirar o ranço das carnes com alcaparras, mas vou recuperar essa prática da Idade Média lá em casa, porque é a terceira vez que esses maîtres e garçons querem me oferecer lula. E com ranço! Ora, só com alcaparras!

Estou inclusive pensando em mudar de negócio e me tornar um alcaparreiro e ficar rico. O grande negócio não é canavial nem etanol, é alcaparral, alcaparrol. Breve teremos carros movido a alcaparra e nem vem, a receita é minha e só vai dar esse prato nos restaurantes: Hoje: Lula ao molho de alcaparras. E pelo jeito vou exportar a idéia: Hugo Chávez ao molho de alcaparras; Evo ao molho de alcaparras; Rafael ao molho de alcaparras; Kichner ao molho de alcaparras...


Alcaparras à parte, a desculpa desses que desejam perpetuar-se no poder, mexendo na Constituição, é a da não continuidade de seus projetos por outros governos. E qual o projeto que o PT trouxe para o Brasil? A política do Canguru de amarrar milhões de canguruzinhos às bolsas? Esperávamos mais do que paliativo, mas já que aquilo tem o nome de projeto, a solução seria mexer na Carta Magna para inserir punição para os Atos Políticos como ocorrem com os Atos Administrativos. E isso não é novidade. Qualquer professor de Direito Constitucional ou Administrativo sabe disso.

Se já houvesse punição para os Atos Políticos não haveria esse mundo de obras abandonadas pelos governos, Federal, Estaduais e Municipais. Muitas delas só porque foi iniciada pelo governo anterior: “Vou colocar azeitona na empada do outro?!”. Mas parece que os políticos não gostam de punição. Seria atirar no próprio pé. Olha o cronista dando uma contribuição ao seu país. Daqui a pouco vão bater à minha porta perguntando se não quero ser um politiqueiro. Já foram. Vade retro, Satanás! Sou um Evangelista. Amo a crônica, a poesia, evangelizar las mujeres com versos, nada mais.


O que eu não disse ainda à amiga e ao amigo sobre lula é que boa parte da minha vida passei trabalhando para os chineses numa lanchonete. E qual o prato que era sempre servido no almoço? Lula! O velho cozinheiro chinês girava a colher na panela, provava o caldo, fazendo ar de saboroso; batia três vezes na testa e dizia (Chinês não fala o R): lula bom pala o céleblo!
E hoje em chinês ablasileilado lespondo: bom pala o céleblo de quem?
- Dos banqueilos e glandes emplesálios.

E quase esqueço de dizer, antes da Idade Média as alcaparras já eram muito apreciadas no Grande Império Romano e antes do Império Romano existiram Grandes Impérios e lá estavam as pequeninas alcaparras, antes de Adão, e belo é isso: Os Impérios passam, as alcaparras ficam.

segunda-feira, 5 de novembro de 2007

A MULHER DO PASTOR

Inconsolável chorava a mulher de um pastor e as outras irmãs em cristo se condoeram:
- Está triste, irmã Gilalbina?
- Sim, minha filha! Muito triste, mesmo!
- E o que houve pra senhora ficar assim, santo Deus, a igreja toda está reparando?!
- A irmã Angela foi embora da igreja!
- Por quê?!
- Não sei! Não sei!
- Mas irmã Gilalbina, muitas irmãs foram embora da igreja e a senhora nem ligou!
- Ah, mas essa é a irmã Angela, entende?! Gostava muito da Angela. Vou sentir tanto a falta dela. Dava o dízimo tão direitiiiinho!!!

ETA REPOSTA PORRETA!

Com uma rima sepulcral vou contar a historieta local do deputado federal Bento Borboleta, que no trabalho social fazia o genial nunca visto no planeta: andava por tudo o que é bairro, trocando perna mecânica por um par de muletas.
E se dissessem algumas coisas, olhava com cara de mau, de comigo-ninguém-pode, de assustar o capeta. Sou o deputado federal Bento Borboleta! Nessa mão trago pistola, na outra uma caneta. Se a caneta não resorve, arresorvo na espoleta. Esse era o deputado federal Bento Borboleta. Fazia o que era certo, o certo da sua veneta. Vivia cercado de gente que não lhe fazia careta, de gente pobre e humilde, levando uma vida perneta; que de dia comia ovo, à noite sonhava xuleta. Gente imediatista, que trocava seu voto, meu Deus!, até por camiseta. Bento Borboleta às vez andava de terno, às vez trajava jaqueta, mas nunca mudava o discurso, onde quer que ele entrasse não respeitava etiqueta: Sou o deputado federal Bento Borboleta: não bato antes de entrar, ignoro essa plaqueta! Falava tão retumbante que sacudia brincando um poderoso cometa. E borboleteava daqui, borboleteava dali com fantásticas piruetas. E o tempo escorria escondido na areia da ampulheta. E desde já peço perdão por tentar uma crônica e sair essa croniqueta.
Mas crônica não é fragata, transatlântico e em geral não traz escopeta. Quase sempre é uma água-de-flor, uma suave cançoneta, mas pode vir com soldados empunhando baionetas. A crônica é miudinha. A crônica é uma corveta. Do tamanho da minha amada que aqui chamo Julieta. A crônica canta o rico, o pobre e até a sarjeta. A crônica acima de tudo corre atrás do cupim infiltrado na pobre daminha gaveta. Cronista, em vez de lanterna, procura com lanterneta. Mas no Fórum de Meriti, chegou o dia e a hora em que Bento viu a coisa preta. Tão preta, mais preta que a bata do Zé de Anchieta. Seus olhos ficaram vermelhos, ardendo que nem malagueta. Mas também achou de entrar na sala de um juiz-comigo-não-se-meta! Um juiz virginiano, meio francês, que não gostava de graça e muito menos de treta. O deputado pensava que todos se intimidavam com o toque da sua corneta. Girou a maçaneta, saiu entrando e cornetando, barulhando mais que marreta: sou o deputado federal Bento Borboleta! A tropa atrás de si parecia milhões de carretas. Da tropa um trazia baqueta, um outro trazia tarol e quando rufavam os tambores, ele entrava como um Sol expulsando as silhuetas: Sou o deputado federal Bento Borboleta! E o juiz sem sequer erguer os olhos, eta resposta porreta, disse em tom educado para o deputado, limpando as suas lunetas: Muito prazer! Pedro Paulo Mendes Arouet: Juiz para sempre! O deputado saiu da sala com a tropa meio zureta. Mas ninguém se assanhou em sorrir se não ficava maneta. Porém, um não resistiu e tocou a história pela trombeta. Sinceramente esse juiz, nesse mundo de estátuas buscando status, merecia uma estatueta, mas as medalhas do país, agora, modernamente, vão até pros picaretas.

domingo, 4 de novembro de 2007

Gatonet ou Comunitarionet?


Caro Lukata, meu nome é Tuberculose e me indicaram um psicólogo para me ajudar, mas como sempre fui amiga dos escritores resolvi passar antes na sua coluna para saber sua opinião. Ocorre que ressuscitei e não quero continuar sendo chamada pelo mesmo nome do passado; quero que me chamem de nome suave, por exemplo, “Amiga do Peito”.

Os velhos são chamados de “Melhor Idade”; o ajudante de carga e descarga de caminhão é “Auxiliar de Transporte”; as prostitutas são “Promotoras de Evento”; o Dia dos Mortos é delicadamente o Dia de Finados. Quando na 2ª série (tá pensando o quê, estudei, meu filho) eu estava agarradinha ao pulmão de um aluno carente da 2ª série e ouvi o Juca dizer que o pai do Ari era lixeiro e a professora nos deu a primeira aula de delicadeza: O pai do Ari era funcionário da limpeza urbana.

As escolas e os governos estão sempre ensinando, mas o povão não aprende. Ora, por que não podem me chamar de “Amiga do Peito?” Na sala de aula, se alguém tinha lepra, não tinha lepra, era “Mal de Hansen”; se morria, não morria, viajava para “Os Campos Santos”, embora, surgissem àqueles alunos igualzinho aos discípulos de Cristo: Professora, na rodoviária há ônibus para Campos Elíseos, Campo dos Afonsos, Campo Grande, mas Campos Santos, não! Explica outra vez? E a professora Miriam, imitando Cristo, dizia: Até quando vos sofrerei? Depois dizem que brasileiro burro nasce morto! E Miriam Paroxítona não usava o termo Eufemismo, falava em delicadeza. Dizer Mal de Hansen e não lepra, Campos Santos e não morte.


Mais tarde andei em pulmões finos, mas eu gostava mesmo era dos pulmões dos meninos lá do alto, onde se dizia morreu mesmo, mas os poetas do morro foram melhorando o nome da morte para “Viajou para a Terra dos Pés Juntos” ou “Vestiu Paletó de Madeira”. Nos pulmões finos do asfalto eu sofria. Acordava de manhã com baldes de ampicilina na cara, mas nos meninos do morro eu era vitaminada com fumaça e falta de comida. Que paraíso!Lembro que entrei no pulmão de um camarada e fui estagiar na Defensoria Pública e vi a dificuldade para dizer às pessoas que assinassem a Declaração de Pobreza, mas ali também chegou a delicadeza e mudamos para Declaração de Hipossuficiência Jurídica. Belo nome, não?! Mas o prefixo grego hipo significa – posição inferior.


Também lembro num ônibus que ia para Bonsucesso e três sacaram de suas armas e a cobradora perguntou se era um assalto e olhando para nós eles disseram que não, tratava-se apenas de um empréstimo compulsório. Apesar do boné, reconheci a voz de um dos alunos da Miriam Paroxítona, aquele pulmão já havia sido meu. Como os governos já estavam habituados a fazer empréstimos compulsórios no povo, não sentimos tanto.

Por falar em governo, outra delicadeza nos fez a ministra da Economia do governo Collor, quando disse na TV que não estava havendo aumento e sim um realinhamento de preços. Veja Lukata, todos, menos eu, são chamados por nomes delicados, leves como a crônica. O que devo fazer para ser chamada de “Amiga do peito”?


Desprezada Tuberculose, não sei explicar o porquê da discriminação, mas posso adiantar que você não está sozinha nessa briga.

Recebi por esses dias um e-mail do diabo, onde ele reclama a falta de delicadeza para com ele também. Segundo o evangelho de João, 8:44, ele é o Pai da Mentira, mas os seus filhos que praticam a mentira, em vez de “Filhos da Mentira” são tratados por “Filhos que Faltam com a Verdade”; a Gatonet também me escreveu pedindo ajuda; que o povo quando perguntado sobre TV a Cabo, só fala em Gatonet. Você diz, o povo não aprende. É muito sincero. E é, minha Cara.


Um professor meu de EPB, General-de-Exército, já dizia que o exemplo é de cima para baixo. Recentemente tivemos um belo exemplo de cima quando, para a aprovação da CPMF na Câmara, acusaram o governo de estar fazendo barganha, negociata com os cargos da Petrobras. Na mídia, um dos líderes governistas saiu em defesa, dizendo que não estávamos entendendo. Não se tratava de barganha, negociata, mas de, olha a fineza, “Partilha de Gestão”.

Cara Tuberculose, não acho que deva procurar um psicólogo porque ele, pretensiosamente, vai dizer quem você realmente é; o cronista só vai ouvi-la e depois publicar uma crônica. Sinceramente, acho que você, o diabo e a Gatonet devem procurar um líder governista, pois quando a chamarem de Tuberculose, ele dirá “Amiga do Peito”; quando chamarem o diabo de “Pai da Mentira”, ele dirá “Pai dos que Faltam com a Verdade” e quando disserem Gatonet, ele dirá com delicadeza: Comunitarionet.

O DOM DO TIO WILLIAM


Li na internet que um dos melhores relatos de levitação da história aconteceu em Londres quando Daniel Douglas elevou-se no ar, flutuando para fora através de uma janela e entrou por outra a 24 metros de altura numa elegante casa londrina, presenciado por testemunhas respeitáveis como o visconde Adare, o senhor de Lindsay, e o capitão Winne. Feita a leitura digo que também cresci ouvindo histórias fantásticas na família, óbvio, bem mais modestas; histórias de 20 centímetros, histórias de pouca fé.
Mas contam as testemunhas que titia, quando havia incêndio no roçado, ia até a beira do fogo, labializava umas palavras e as chamas iam diminuindo, extinguindo-se por completo. Dizem que lobisomem só desencanta com bala ou alguma coisa de prata, mas papai desencantou essa fera com uma pedrada; já o meu tio Antônio carregava a famosa oração de São Cipriano e podia se transformar no que quisesse, porém, certa vez meteu-se numa briga, bateu muito e a polícia saiu no seu encalço até que o encurralou num beco sem saída. Ora, tio Antônio num piscar de olhos virou balde e os policiais ficaram doidos, perguntando uns para os outros: Pra onde é que ele foi? Havia um policial gordão e sempre chegava por último nas perseguições e quando chegou, bufando, foi logo sentando no único balde que havia no beco, esmagando o pobre tio Antônio que tinha virado um baldinho de apenas 1,99.
Como se não bastasse, semelhante atrai semelhante, uma das minhas tias por parte de mãe casou-se com um barbeiro e veio a ser o meu tio William que além de cortar cabelo e barba, levitava. Ele nunca levitou na minha frente, vi secreto, mas quem ia à casa dele, pessoas sérias como o professor Waldir, matemático, via o tio William deitar e levitar uns 20 centímetros acima do sofá, muito embora titio ficasse mais inspirado a levitar depois de umas 20 cervejas, daquelas que fazem levitar até lutador de sumô. E Veja como a fé escasseia: em 1868 viram Daniel Douglas erguer-se 24 metros acima do chão, em nossos dias, meu tio William levitava apenas 20 centímetros. Cristo tem razão: quando, porém, vier o filho do homem porventura achará fé na terra?
Não me surpreendia o tio William levitar porque se o professor Waldir fosse lá em casa veria meu pai e madrasta me levitando 20, 30, 40 centímetros do chão por qualquer coisinha como fazer a letra “e” minúscula, fechadinha como um “i”; calçar as meias com calcanhar para cima... Mesmo hoje o professor se arrepia quando conta. Toda a razão ao professor Waldir porque não é todo dia que uma pessoa se ergue 20 centímetros acima do solo ou sofá ou faz levitar coisas como livros, copos, canetas. Também não é em qualquer ambiente que se presencia o ato de levitar. Levitações semelhantes à de Daniel Douglas, por exemplo, só encontrei na área pública, por exemplo, no INSS, onde advogados, juiz e afins, movidos por tamanha fé, conseguiram levitar enormes quantias dos cofres públicos direto para as suas contas.
Ora, como já temos Faculdade de Rock e Surf, não duvido que a próxima faculdade a ser criada e a mais procurada, principalmente pelos politiqueiros, será a Faculdade de Levitação, pois dessa forma ninguém precisará passar pelo constrangimento de ser pego com a mão na mala ou dólar na cueca, coisas desse tipo.
Como o leitor pôde ver nesse rito sumário que exige a crônica, minha família está repleta de dons, todos eles, hoje, sem utilidades: o da minha tia que apagava incêndio foi suplantado pelo Corpo de Bombeiros; o do tio Antônio morreu com ele, pois a oração também foi esmagada pelo policia gordão; meu pai, em todos os setenta anos de vida, com pedras, só desencantou um lobisomem numa terra como a nossa cheia de lobisomens. Atirou muitas pedras no principal lobisomem da sua vida, o lobisomem do INSS, mas nunca desencantou o bicho e na hora do aumento dos aposentados esse lobisomem vem e devora tudo. Quanto ao tio William de certa forma herdei um pouco do seu poder de levitar, mas longe de ser o seu substituinte, bastaria, a começar por mim, levitar de dentro das pessoas toda mágoa, amargura, rancor, ódio, guerras...
Por enquanto, quem for lá em casa vai me ver no sofá com um dicionário aberto de onde faço levitar palavras para uma folha branca, numa preta máquina de escrever de 1912, até compor uma crônica, conto, poesia e quem sabe um dia o romance que nunca consegui viver.

sábado, 3 de novembro de 2007

HAICAI

O LODO SE ARRASTA SEMPRE
E QUANDO SOBE
É APOIADO NA PAREDE

A SACOLA REGINALDA


Nesse inverno-quente, abrindo os jornais, dei com notícias de que leis proibirão o consumo de sacos plásticos. São Paulo, Rio e outros estados. Em São Paulo o governo já vetou. Políticos de um lado e outro não se entendem. Uns dizem ser benéfica outros que é trocar seis por meia dúzia. A questão é a substituição das sacolas plásticas por outras sacolas plásticas biodegradáveis que se decompõe mais rapidamente na natureza. Parece que estes legisladores nunca foram ao teatro ou ao cinema ou recitais de poesias. Estão apresentando estes projetos por não conhecerem a sacola Reginalda. Se conhecessem, optariam pela sacola de pano. Uma lei tem que combater todos os casos de poluição. Não adianta nada trocar uma sacola plástica por outra sacola plástica porque se, em tese, acaba com a poluição nos rios e lagoas, não acaba com a poluição nos teatros, cinemas e recitais poéticos, nos nossos ouvidos. Poluição sonora. Quem já não foi perturbado por um barulho de sacola plástica durante a apresentação de uma peça, filme ou poesia? Proibindo a sacola plástica mataremos dois coelhos com uma sacolada só. Sacolada de pano. É atirar no que viu e acertar no que não viu: o barulhinho chato dessas sacolas plásticas nos espetáculos. Acho que daria para esse povo ser mais fino como os personagens do mensalão que usam malas e cuecas. Eles nunca foram pegos , fazendo barulho, com dólar numa sacola plástica. No Centro Cultural Banco do Brasil há uma jovem senhora que sempre leva uma sacola plástica. É o terror. E se reclamarmos ela só falta nos bater. Um dia assistindo à comédia “Fama para Todos”, ela sentou-se ao meu lado e as poltronas já estavam todas ocupadas. Tive de agüentar. Não agüentei. Pedi que parasse de mexer na sacola e senhora ficou uma fera porque chamei de sacola a sacola. Que gracinha! Era Reginalda o nome da sacola de supermercado dela. Gigi para os íntimos. Desbotada, parecia uma bolsa crepe. Toda enrugada. No teatro foi mais interessante ainda: um casal, ele careca, bola de bilhar, ela rolicinha, sentado ao meu lado com duas sacolas plásticas, uma delas se mexendo sozinha. Olhei duas vezes de cara feia, feio aqui é redundância, sou feio mesmo, e a mulher se desculpou dizendo que estava com desejo de comer galinha com batata. Não acreditei que uma galinha havia entrado no teatro, mas enfim: é Brasil... Daí a pouco a galinha querendo respirar, furou a sacola. Pior, desamarrou-se e fugiu. O pessoal naquela capacidade de improvisação incorporou a galinha, o careca e a rolicinha à peça e tudo terminou bem que era comédia, mas nem tudo é comédia nessa vida, às vezes há uma reflexão e a sacola plástica, as Reginaldas, atrapalham. A peça é feito a crônica, às vezes é uma sacola plástica, vazia, leve, às vezes é pesadinha com três quilos de batata dentro para cozinhar. Já pensaram a Bárbara Heliodora no teatro, coitada, atenta para fazer a sua crítica e uma galinha com três quilos de batata ao lado atrapalhando e ainda tendo que chama-la de Reginalda? Quando saí do teatro, dezenas de sacolas plásticas pelas ruas. Umas nas esquinas, conversando com os bueiros, outras correndo para lá e para cá nos cruzamentos...Uma até veio conversar com o bico do meu sapato, mas tranquei-a na lixeira. As ruas pareciam pertencer a elas. Um redemoinho passou e levou muitas sacolas para o céu. Em lá chegando, espero que aquele rio puro da água da vida prometido, claro como cristal, não esteja cheio de sacolas plásticas.

FALCUDADE NO AURÉLIO


Nesse friozinho e fim de outono a coisa esquentou. Enquanto na Europa, Rúcia e Estados Unidos travavam uma Guerra Fria quanto ao escudo antimícil, aqui no Rio de Janeiro travou-se uma Guerra Quente com xingamentos e empurrões entre cariocas: professores de um lado e policiais e guardas municipais do outro, mas graças às pílulas do Frei Galvão, agora também distribuídas no Rio, e em breve com a ajuda de Sua Santidade o Papa, essa bendita há de ser globalizada, nenhum mícil foi disparado e ninguém saiu ferido. Já o Poder Executivo na pessoa de César, Ave, César, prefeito dos Estados Unidos Carioca, disparou o mícil Resolução 946, mas foi interceptado e destruído pelo mícil Decreto Legislativo 181 do escudo antimícil da Rúcia da Câmara Municipal. Por esses filhos de Putin, certamente monologava César, Ave César, sem coragem de transformar essas palavras em diálogo com os seus oponentes. E os jornais não perderam tempo, travando uma Guerra Fria de notícias: “Câmara do Rio derruba aprovação automática. Aprovação automática leva bomba”; “Crise no ensino. Cai aprovação automática”. O fator que desencadeou a guerra foi a Resolução 946 que determinava a aprovação automática de alunos da rede municipal de ensino. Lá fora, Rúcia e Estados Unidos já sinalizaram para um acordo, porém, aqui, César promete uma nova troca de míceis no judiciário. Sugiro à juíza ou juiz do processo pedir um pedacinho do PAC (Programa de Aceleração do Crescimento) para instalar em caráter de urgência um escudo antimícil na Justiça para evitar futuros dissabores como: “Juiz atingido por mícil perdido durante a audiência”. Não sei qual dos míceis tem razão, mas lembrando de um amigo formado em Letras, Pedagogia e agora cola grau em História, acho delicado, pois esse amigo vinha dando aulas, escrevendo no caderno, no quadro e poesias, “Cidade” com S, segundo ele, “Sidade”. É fato que muitas cidades têm merecido essa escrita porque têm feito várias curvas, muitos S com os dinheiros públicos. Alertei-o que assim não dava para ser professor nem por usucapião. Atacar as vergonhosas taxas de repetência do Brasil, sim, mas aprovando o erro é que é vergonhoso. Escrever Cidade com S não é dose para cavalo: é para elefante, mas dizem que a língua é dinâmica e talvez daqui a 500 anos “Cidade” se escreva com S. Agora você deve estar entendendo porque até aqui venho escrevendo Míssil e Rússia com C. Chegamos ao ponto. Vejam a minha prima Hellenhood. Tem nome de ministra do Supremo, mas é simples diarista. Veio do Norte e há mais de 40 anos pronuncia e escreve: “Dificulidade e Falcudade”. Há muitos assim. Como a terceira idade vem procurando escola, com a aprovação automática, Hellenhood vai morrer nessa dificulidade, pedagoga. Deixo de dar voz a Pedagoga. Já falou demais, inclusive, fazendo uso do míssil 946. Creio não ser caso só de professores e Poderes, mas de persuasão, Democracia, adesão. Hellenhood, boa diarista que é, na Zona Sul, as patroas tentam ajudá-la, dizendo que não existe a palavra Falcudade e sim Faculdade. Hellenhood não é filósofa, mas pensa, e nem aí, responde que Falcudade já deveria estar no dicionári: “É pena que o Chico Buarque de Holanda morreu!” E a filha corrige: “mãe, é Aurélio!” “Aurélio ou Chico, a verdade, num sabe, é que Faculdade é no asfalto, morros é Falcudade”. De uns tempos para cá, tempo mesmo, aquelas armas trombolhudas de pesadas foram sendo aposentadas, aliás, tudo hoje é bem levinho: a geladeira, o salário, desculpe, esse sempre foi leve; os carros, então, parecem folhas de papel fino. Em lugar delas vieram, por exemplo, o FAL (Fuzil Automático Leve) e outros fuzis como AR15, AK47, M16... Dependendo do que se quer fazer com inimigo. O Fal é o que mais estraga a vida. É o César da destruição. E daí surgiu um problema para o banditismo: a manutenção e uso desses armamentos modernos que subiam os morros. Eu disse subiam porque o traficante não desce, compra passaporte e atravessa a fronteira para ir buscar fuzis israelenses, russos, alemães... Que mistério hein, Almirante? Num país em que se apuram bilhões de dólares com as privatizações e não é feito nenhum investimento social verdadeiro; num país em que há um superávit de 4,2 bilhões de dólares num mês e o investimento social que se faz é um “Bolsa Família”, não é difícil recrutar um soldado experiente para dar aulas nas Falcudades (Faculdades de FAL) existentes nos morros, ganhando bem mais que um professor de faculdade pública no asfalto, com pós-doutorado em Harvard... Morro também tem seu presidente e PAC (Programa de Aceleração do Crime). Hoje quando Hellenhood chega para fazer as faxinas, as patroas automaticamente dizem: Pois é, Hellen! Você tem razão. Está faltando Falcudade no Aurélio. “Liga não, patroa! A gente vence essa dificulidade!” E vendo essa positividade de Hellen, automaticamente recordo bons tempos que entre os meninos do morro saíamos armados de bodoques para caçar aquelas rolinhas bojudinhas, deliciosas na farofa, mas muitos meninos de agora, nos morros, ficam no automático, de fuzis nas mãos, caçando helicópteros bojudinhos. Em vez de mudar a rota dos helicópteros, não daria para mudar a rota desses meninos com tanto dinheiro sobrando no Ministério da Corrupção?! Pistola de corrupção existe em qualquer lugar do mundo, mas a nossa é automática, pois desde o superávit de abril que essa pistola não pára de atirar, é um escândalo atrás do outro e são tantos que de pistola já vai se tornando um fuzil. Assim, continuaremos mudando a rota de helicópteros, aviões, lazer, trabalho, escola...Um trem enguiçado à bala dá para fazer baldeação, mas com helicópteros e aviões é uma dificulidade, Excelência. Não há Falcudade que ensine isso. Mas me ocorreu, agora, uma dúvida sobre os PACs, o do governo e o do bandido: Qual que é o Programa de Aceleração do Crime?

AS NOVAS HIENAS

Esta manhã é diferente, mas naquelas manhãs corríamos cedinho para a aula. Nunca faltávamos. Meia verdade. Saíamos com destino à escola, mas quantas vezes nos desviamos e fomos parar naquela lixeira em Portugal Pequeno, em Meriti! Os caminhões despejando papelão, cobre, alumínio e metal, nosso Natal, menos mal, animal. Dava para comprar as roupas até do ano novo e mais: “mãe, a rabanada é com a gente!”.
Naquelas manhãs, acreditávamos nas queixas dos comerciantes na televisão e íamos lá às lojas deles, comprar as coisas para eles, como a gente, terem ao menos rabanada sobre a mesa, nas noites de festas. O caminhão azul era meu. Ninguém tocava. Trazia cobre e metal, os mais caros da época. Meu pedaço era privilegiado. Vez por outra voavam sacos de vitaminas do governo por sobre um muro e me acertavam a cabeça. Almoçávamos todos. Bocas rosas de leite em pó. Engordavam mesmo, aliás, inchavam. Mas legal, as datas vencidas não faziam mal.
Naquelas manhãs, os catadores não eram anônimos. Conhecíamos cada carência. Éramos medusas, transparentes à luz do sol e do olhar. Fragmentados de corpos, almas não. Nossos corpos davam passagem à aspereza e a desamizade. Retínhamos a doçura. Os semelhantes se atraem, dizem.
Naquelas manhãs, corríamos para o metal que vinha misturado ao lixo dos parques de diversões, das fábricas, cinemas, feiras e casas. E ele vinha sujo de iogurte, açúcar, mel, café, sangue de galinha, coisas leves, coisas de crônica, desanimalizadas.
Mas esta manhã é diferente: depois da intensa fuzilaria, os meninos acordam cedo para catar. Só para catar. Metal. Metal da violência. Cápsulas. E enchem bolsas. Pesadas bolsas. E no ferro velho eles faturam. E vem a noite. E na cama para dormir, não dormem. Perguntam-se:
- Pô, ainda não deram um tiro esta noite?! Amanhã vai ser fraco.

A RABANADA FRIA


Aí vem o Natal, há pouco comemoramos o Dia da Criança e estamos à beira de um choque térmico. Foi perto do Natal que vi Natalina. Tiramos o atraso da conversa, só da conversa, caminhando pelas ruas de Vilar dos Teles ao som do Jingle Bell dos politiqueiros. Como é deselegante falar a idade de uma mulher digo apenas que Natalina estará em breve, fazendo uso da Lei No 10.741 de 1o de Outubro de 2003. Passando em frente a uma padaria vimos uma travessa de rabanadas na vitrine. Convidei-a para deliciarmos algumas enquanto conversávamos, porém, a atendente ao dizer que a rabanada estava fria, Natalina recusou. Arrepiou-se toda. Os olhos se encheram de lágrimas. Não como rabanada fria! Mais adiante ofereci sorvete: Natalina, sorvete só pode ser frio, né?! O arrepio deu lugar ao sorriso. Aceitou. Fiquei considerando se não teve algum desprazer com rabanada malfeita, portadora da bactéria salmonela. Se a fatia de pão for muito grossa, pode acontecer e aí dá uma baita diarréia, febre... Quem já leu o Dr. Bactéria sabe disso. Foi salmonela?! Não. O sorvete tá gostoso, né? Desconversou. O arrepio que Natalina sentiu ao ver as rabanadas frias me fez lembrar os meus arrepios de outrora quando me ofereciam bucho. Detesto bucho. Por quê? O navio da Marinha fazia a viagem de adestramento com os alunos da Escola de Aprendizes de Marinheiros do Espírito Santo. Três dias de viagem em alto mar. Almoço e janta só dava bucho, mas não aquele bucho dourado, ladeado por batatas, lingüiças, cheiro verde... Eram umas pálidas tripas de bucho em água e sal e besourinhos boiando, alguns ainda vivos, tentando chegar às margens do Ypiranga da bandeja. Esse negócio de comer besourinhos, olho de coelho nunca foi comigo. Comer gafanhoto, coisa assim, era lá com São João Batista, o que foi degolado, o que disse à multidão: Quem tiver duas túnicas, reparta com o que não tem, e quem tiver alimentos, faça da mesma maneira. Parece que perdeu a cabeça em vão porque os próprios cristãos de hoje dão testemunhos de arrepiar mais do que rabanada fria e bucho. Há um cristão famoso que sempre dá seu testemunho na mídia e igrejas: “andei muito a pé, sofri muito, mas hoje tenho 6 carros na garagem. Tem carro que nem uso!” E há mulheres de pastores reclamando da vida com 18 pares de sapatos no armário, enquanto muitas, até viúvas, vão às igrejas de sandalinhas furadas. Esse evangelho não é o de João Batista e Cristo e nem de Satanás. Mas voltemos à rabanada fria. Fiquei os três dias comendo sobremesa e nada mais. Depois da viagem, toda vez que alguém me oferecia bucho me arrepiava todo até a náusea. E ainda dizem que a Marinha é uma mãe! Hoje, 20 anos após, já não me arrepio, mas ainda não consigo comer bucho. Engraçado, Natalina! Tenho paixão pelas rabanadas frias! Provoquei. Ela nada respondeu, arriando os olhos no sorvete, mas sorvete derrete e Natalina passou a tripular os olhos no horizonte das recordações e o seu porão foi se abrindo que nas noites de Natal nenhuma coleguinha a convidava para cearem juntas. Só três ou quatro dias depois é que apareciam chamando-a para ir às casas delas e de casa em casa, cada coleguinha mais a mãe pediam para Natalina sentar, abriam a geladeira e vinha aquela travessa de rabanadas frias. Algumas ainda tinham o zelo de catar nas gavetas o cotoco de vela perfumada que aquecera a noite da Missa do Galo e acendiam ao lado da menina e diziam: eis a luz do mundo! Mas para Natalina era vela de defunto com cheiro de flor. E certamente alguém dirá daí, o importante é a barriga cheia, entanto, como dizer isso a uma menina de 4 anos daquela época? Tamanha a frieza em que esse mundo se encontra, acho que as de 4 de agora entenderiam. Já não é caso de apenas quem tiver duas túnicas, repartir com quem não tem; e quem tiver comida, fazer o mesmo. Para uma menina de 4 anos um lindo vestido depois da Noite de Natal é um vestido comum, a rabanada é pão. Se levarmos em conta a frase que Luchino Visconti pôs na boca da dona de uma lavanderia no seu filme Rocco e seus Irmãos: “As coisas boas acontecem quando não precisamos mais delas”, parece que muitos adultos, hoje, pensam como a menina Natalina que, naquele tempo, apesar da pouca idade sabia muito bem a distinção entre Missa do Galo e Missa do Gelo. Que mundo louco esse. Estamos à beira de um choque térmico: Aquecimento global por fora e frieza global por dentro. A propósito, quem ganhou o Campeonato Mundial de Fórmula 1 foi um “ICE MAN”, O Homem de Gelo, mas esse é outro gelo.

O DOM DA METAMORFOSE


Esta é a 4ª ou 5ª vez que me alimento de lula. O chinês com quem trabalhei dizia ser bom para o cérebro, mas estou com isso me tornando um opsomaníaco (Predileção por determinada espécie de alimento). Preciso de um médico, preciso mudar. Mudar como Proteu. Proteu aparece na Odisséia como um deus do mar, pastor dos animais marinhos de seu pai, Poseidon. Possuía o dom da metamorfose e podia se transformar no que desejasse: leão, serpente, pantera, javali, água, árvore... Na Mesopotâmia não existia um Proteu, mas já se acreditava na metamorfose, em pessoas poderem assumir formas diferentes da humana. Em Proteu, muitos vêem o símbolo do oportunismo, a política é o paraíso dos proteus, mas vejo nele o símbolo da liberdade: Permite que a mulher de 60 anos apareça vestida de oncinha com um piercing no umbigo. Na vida não há os que amam ser leões; os que escolhem ser hienas; os que imitam os javalis, avôs dos porcos; os que se metamorfoseiam para fugir às responsabilidades ou para sobreviver? Hipócrita, por que criticas o piercing dos 60 anos se tens sido javali a vida inteira? Saltemos da Grécia antiga para São João de Meriti, Avenida N. Sa. Das Graças que já não é a mesma sem o camelô “Vai Envelope”. Seu nome? Proteu da Silva, camelô de envelopes para carta. É que na Baixada Fluminense tem de tudo: chinês, sírio, turco, árabe, grego, italiano, judeu... E foi numa dessas misturas de grego com nordestino que veio à luz, Proteu da Silva. Sentava pela manhã no seu caixote de feira e começava o pregão: “Vai envelope?”. Voz de locutor FM. Quando os compradores ouviam “Vai Envelope?”, respondiam: “Vai!”, mas no tempo de a internet bebê. Hoje, achar desses envelopes nas bancas é um milagre e o camelô (Vai envelope?) sumiu, mas na vida há outros proteus. A política é o paraíso dos proteus. Querendo o voto, se você é Vasco ele é Vasco, se é tricolor, diz ele: “Sou tricolor”. Proteu se transforma em árvore, lembram? Pois bem, aqui certos proteus se transformam apenas em soja e cana-de-açúcar. O resto que se dane de fome. Na crise aérea Proteu se transformou num controlador de vôo, parecia do lado deles, talvez resquício sindical, mas depois se metamorfoseou para o lado de lá e aumentando o tom chamou Proteu Jobim. Outro Proteu na literatura, deus das maldades, é Brás Cubas. Aprontou muito em suas “Memórias Póstumas...”: “quebrei a cabeça da escrava”. Agora aprontou de novo, metamorfoseando-se em Pitboy, espancando uma empregada doméstica. Até quando um Brás Cubas será filhinho se ele mesmo diz-se diabo? Até as mães andam se metamorfoseando. Já existe mãe pegando o filho pela mão, levando-o até o tráfico para ver se não há uma vaga e a resposta é: “aguarde na fila!” Um filho por um prato de lentilhas. Aonde chegaremos? Bem, mãe é mãe e só existe Jacó porque existe Esaú, disse o Mestre Literatura, e até aqui é ordinário, extraordinário é que agora para cada Jacó há milhares de Esaús, disputando um único prato de lentilhas. E os Jacós estão aí: Jacó vereador, Jacó senador, Jacó traficante... Que não podendo atender os muitos Esaús, respondem: “aguarde na fila”. O assunto (perdoe-me os vês) era para ser um leve envelope vazio, sem o peso do selo, da tinta da caneta, sem o peso do perfume das mãos cremosas das atendentes dos correios e da tristeza do camelô “Vai envelope” quando viu seu negócio desvanecer, entretanto, para falar de Proteu nesta crônica o acorrentamos. Vejam nesse texto ele já se transformou em soja, cana-de-açúcar, chefe de Estado, mãe... Ora vai à esquerda, ora à direita. É metamorfose pura, mas o Proteu de outrora assumia uma forma de cada vez, um Proteu sucessivo, já os de agora são Proteus simultâneos como o cidadão do meu município, ao mesmo tempo presidente do Sindicato dos Servidores Públicos e subsecretário de Fazenda do prefeito. É uma surpresa. Surpresa também é na pirâmide social a classe média que sempre foi o Proteu da história, ora assomando, parecendo com os ricos, ora sendo abatida ao nível do cortador de cana, parecendo com os pobres, estar isolada. Sozinha. Não tem como antes, usar a classe pobre como massa de manobra para erguer-se até à riqueza e depois abandoná-la porque Proteu Lula imunizou os pobres com o Bolsa Família. Na história desse país isso nunca ocorreu. É uma inovação. Por falar em surpresa, andando por entre quinquilharias, antiguidades e raridades da feira da Praça XV, em meios aos muitos pregões ouvi uma voz, agora com a voz enrugada, voz também envelhece: “Vai viagra?” Sim. Era Proteu, sem envelopes, sentado não mais no caixote, mas num banco envernizado e que em dias de sol vendia viagra e nos dias nublados vendia guarda-chuvas. O camelô é um Proteu urbano. No fundo todos somos proteus. Quem nunca ficou um bravo leão ou astuto como serpente? E o exemplo aqui não vem de cima, vem de baixo: se em ti mataram o advogado, ressurja escritor; se em ti mataram a mãe, ressurja mulher... Lutar para a vida não perder tanto para a morte com a metamorfose deixando de ser um dom para ser um trabalho como o é a poesia: 1% é inspiração e 99, suor do teu rosto. E quando forem te procurar numa cova não encontrarão porque já ressuscitaste num corpo de glória. “Vai envelope”? Vai viagr...

CANÇÃO PARA ISABEL E BEIJA-FLOR

um dia em que não precisava
de estar ligado o ar condicionado
a biblioteca abriu as janelas
e por uma delas entrou um beija-flor
e pousou sobre Pablo Neruda
20 Poemas de Amor e Uma Canção Desesperada
tivesse cérebro o beija-flor, Isabel
teria vindo àquela noite
teria vindo naquele inverno
teria pousado em Neruda
mas teria vindo hoje
nessa fresca primavera
em que mangas se arredondam do tamanho dos teus seios
e o rastejante lodo sobe as árvores para vê-la
dos vários pontos de vista
deslizando entre as estantes
(a biblioteca é uma floresta de livros)
teria vindo hoje
e pousado nos teus lábios cheirando a flor
e teu riso progrediria como obra de uma igreja pobre

SUICIDA PÓS-MODERNO

por sua causa Raquel
ele foi para a frente dos carros
mas eram carros de brinquedo
por sua causa ele pulou da ponte Rio-Niterói
mas praticando bungee jump
por sua causa ele ia tomar chumbinho
mas deu ao rato mesmo: não se deve cobiçar as coisas alheias

SEPARAÇÃO DE SÍLABAS

quando a professora perguntava
como era a minha família
eu dizia que era um tritongo
havia cigarra
dançávamos jongo
mas a mãe se foi
a cigarra morreu
a dança acabou
a tristeza invadiu
meu pai e a mim
e viramos ditongo
mas veio a madrasta
que teve três filhos
me jogou num hiato
e fiquei feito um i
em ICARA-í