domingo, 4 de novembro de 2007

O DOM DO TIO WILLIAM


Li na internet que um dos melhores relatos de levitação da história aconteceu em Londres quando Daniel Douglas elevou-se no ar, flutuando para fora através de uma janela e entrou por outra a 24 metros de altura numa elegante casa londrina, presenciado por testemunhas respeitáveis como o visconde Adare, o senhor de Lindsay, e o capitão Winne. Feita a leitura digo que também cresci ouvindo histórias fantásticas na família, óbvio, bem mais modestas; histórias de 20 centímetros, histórias de pouca fé.
Mas contam as testemunhas que titia, quando havia incêndio no roçado, ia até a beira do fogo, labializava umas palavras e as chamas iam diminuindo, extinguindo-se por completo. Dizem que lobisomem só desencanta com bala ou alguma coisa de prata, mas papai desencantou essa fera com uma pedrada; já o meu tio Antônio carregava a famosa oração de São Cipriano e podia se transformar no que quisesse, porém, certa vez meteu-se numa briga, bateu muito e a polícia saiu no seu encalço até que o encurralou num beco sem saída. Ora, tio Antônio num piscar de olhos virou balde e os policiais ficaram doidos, perguntando uns para os outros: Pra onde é que ele foi? Havia um policial gordão e sempre chegava por último nas perseguições e quando chegou, bufando, foi logo sentando no único balde que havia no beco, esmagando o pobre tio Antônio que tinha virado um baldinho de apenas 1,99.
Como se não bastasse, semelhante atrai semelhante, uma das minhas tias por parte de mãe casou-se com um barbeiro e veio a ser o meu tio William que além de cortar cabelo e barba, levitava. Ele nunca levitou na minha frente, vi secreto, mas quem ia à casa dele, pessoas sérias como o professor Waldir, matemático, via o tio William deitar e levitar uns 20 centímetros acima do sofá, muito embora titio ficasse mais inspirado a levitar depois de umas 20 cervejas, daquelas que fazem levitar até lutador de sumô. E Veja como a fé escasseia: em 1868 viram Daniel Douglas erguer-se 24 metros acima do chão, em nossos dias, meu tio William levitava apenas 20 centímetros. Cristo tem razão: quando, porém, vier o filho do homem porventura achará fé na terra?
Não me surpreendia o tio William levitar porque se o professor Waldir fosse lá em casa veria meu pai e madrasta me levitando 20, 30, 40 centímetros do chão por qualquer coisinha como fazer a letra “e” minúscula, fechadinha como um “i”; calçar as meias com calcanhar para cima... Mesmo hoje o professor se arrepia quando conta. Toda a razão ao professor Waldir porque não é todo dia que uma pessoa se ergue 20 centímetros acima do solo ou sofá ou faz levitar coisas como livros, copos, canetas. Também não é em qualquer ambiente que se presencia o ato de levitar. Levitações semelhantes à de Daniel Douglas, por exemplo, só encontrei na área pública, por exemplo, no INSS, onde advogados, juiz e afins, movidos por tamanha fé, conseguiram levitar enormes quantias dos cofres públicos direto para as suas contas.
Ora, como já temos Faculdade de Rock e Surf, não duvido que a próxima faculdade a ser criada e a mais procurada, principalmente pelos politiqueiros, será a Faculdade de Levitação, pois dessa forma ninguém precisará passar pelo constrangimento de ser pego com a mão na mala ou dólar na cueca, coisas desse tipo.
Como o leitor pôde ver nesse rito sumário que exige a crônica, minha família está repleta de dons, todos eles, hoje, sem utilidades: o da minha tia que apagava incêndio foi suplantado pelo Corpo de Bombeiros; o do tio Antônio morreu com ele, pois a oração também foi esmagada pelo policia gordão; meu pai, em todos os setenta anos de vida, com pedras, só desencantou um lobisomem numa terra como a nossa cheia de lobisomens. Atirou muitas pedras no principal lobisomem da sua vida, o lobisomem do INSS, mas nunca desencantou o bicho e na hora do aumento dos aposentados esse lobisomem vem e devora tudo. Quanto ao tio William de certa forma herdei um pouco do seu poder de levitar, mas longe de ser o seu substituinte, bastaria, a começar por mim, levitar de dentro das pessoas toda mágoa, amargura, rancor, ódio, guerras...
Por enquanto, quem for lá em casa vai me ver no sofá com um dicionário aberto de onde faço levitar palavras para uma folha branca, numa preta máquina de escrever de 1912, até compor uma crônica, conto, poesia e quem sabe um dia o romance que nunca consegui viver.

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