sábado, 3 de novembro de 2007

A RABANADA FRIA


Aí vem o Natal, há pouco comemoramos o Dia da Criança e estamos à beira de um choque térmico. Foi perto do Natal que vi Natalina. Tiramos o atraso da conversa, só da conversa, caminhando pelas ruas de Vilar dos Teles ao som do Jingle Bell dos politiqueiros. Como é deselegante falar a idade de uma mulher digo apenas que Natalina estará em breve, fazendo uso da Lei No 10.741 de 1o de Outubro de 2003. Passando em frente a uma padaria vimos uma travessa de rabanadas na vitrine. Convidei-a para deliciarmos algumas enquanto conversávamos, porém, a atendente ao dizer que a rabanada estava fria, Natalina recusou. Arrepiou-se toda. Os olhos se encheram de lágrimas. Não como rabanada fria! Mais adiante ofereci sorvete: Natalina, sorvete só pode ser frio, né?! O arrepio deu lugar ao sorriso. Aceitou. Fiquei considerando se não teve algum desprazer com rabanada malfeita, portadora da bactéria salmonela. Se a fatia de pão for muito grossa, pode acontecer e aí dá uma baita diarréia, febre... Quem já leu o Dr. Bactéria sabe disso. Foi salmonela?! Não. O sorvete tá gostoso, né? Desconversou. O arrepio que Natalina sentiu ao ver as rabanadas frias me fez lembrar os meus arrepios de outrora quando me ofereciam bucho. Detesto bucho. Por quê? O navio da Marinha fazia a viagem de adestramento com os alunos da Escola de Aprendizes de Marinheiros do Espírito Santo. Três dias de viagem em alto mar. Almoço e janta só dava bucho, mas não aquele bucho dourado, ladeado por batatas, lingüiças, cheiro verde... Eram umas pálidas tripas de bucho em água e sal e besourinhos boiando, alguns ainda vivos, tentando chegar às margens do Ypiranga da bandeja. Esse negócio de comer besourinhos, olho de coelho nunca foi comigo. Comer gafanhoto, coisa assim, era lá com São João Batista, o que foi degolado, o que disse à multidão: Quem tiver duas túnicas, reparta com o que não tem, e quem tiver alimentos, faça da mesma maneira. Parece que perdeu a cabeça em vão porque os próprios cristãos de hoje dão testemunhos de arrepiar mais do que rabanada fria e bucho. Há um cristão famoso que sempre dá seu testemunho na mídia e igrejas: “andei muito a pé, sofri muito, mas hoje tenho 6 carros na garagem. Tem carro que nem uso!” E há mulheres de pastores reclamando da vida com 18 pares de sapatos no armário, enquanto muitas, até viúvas, vão às igrejas de sandalinhas furadas. Esse evangelho não é o de João Batista e Cristo e nem de Satanás. Mas voltemos à rabanada fria. Fiquei os três dias comendo sobremesa e nada mais. Depois da viagem, toda vez que alguém me oferecia bucho me arrepiava todo até a náusea. E ainda dizem que a Marinha é uma mãe! Hoje, 20 anos após, já não me arrepio, mas ainda não consigo comer bucho. Engraçado, Natalina! Tenho paixão pelas rabanadas frias! Provoquei. Ela nada respondeu, arriando os olhos no sorvete, mas sorvete derrete e Natalina passou a tripular os olhos no horizonte das recordações e o seu porão foi se abrindo que nas noites de Natal nenhuma coleguinha a convidava para cearem juntas. Só três ou quatro dias depois é que apareciam chamando-a para ir às casas delas e de casa em casa, cada coleguinha mais a mãe pediam para Natalina sentar, abriam a geladeira e vinha aquela travessa de rabanadas frias. Algumas ainda tinham o zelo de catar nas gavetas o cotoco de vela perfumada que aquecera a noite da Missa do Galo e acendiam ao lado da menina e diziam: eis a luz do mundo! Mas para Natalina era vela de defunto com cheiro de flor. E certamente alguém dirá daí, o importante é a barriga cheia, entanto, como dizer isso a uma menina de 4 anos daquela época? Tamanha a frieza em que esse mundo se encontra, acho que as de 4 de agora entenderiam. Já não é caso de apenas quem tiver duas túnicas, repartir com quem não tem; e quem tiver comida, fazer o mesmo. Para uma menina de 4 anos um lindo vestido depois da Noite de Natal é um vestido comum, a rabanada é pão. Se levarmos em conta a frase que Luchino Visconti pôs na boca da dona de uma lavanderia no seu filme Rocco e seus Irmãos: “As coisas boas acontecem quando não precisamos mais delas”, parece que muitos adultos, hoje, pensam como a menina Natalina que, naquele tempo, apesar da pouca idade sabia muito bem a distinção entre Missa do Galo e Missa do Gelo. Que mundo louco esse. Estamos à beira de um choque térmico: Aquecimento global por fora e frieza global por dentro. A propósito, quem ganhou o Campeonato Mundial de Fórmula 1 foi um “ICE MAN”, O Homem de Gelo, mas esse é outro gelo.

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